segunda-feira, 16 de novembro de 2015

O sobrenome da rosa

O pasmo, o horror e a náusea, inegavelmente intensificados pelo sentimento de que, em Paris – diferentemente de Beirute, Bagdá, Sudão e Sinai – os massacrados eram meus iguais, gente da minha cultura e da minha classe social, não são, contudo, suficientes para me fazer confundir os parisinos, em especial a sua juventude e os seus assalariados, com o Estado francês, um dos principais responsáveis pelas catástrofes econômicas, políticas e sociais que há pelo menos um século dilaceram a África, a Ásia e o Oriente Médio. 

O jihadismo islâmico contemporâneo é uma degeneração histórica do nacionalismo laico e mais ou menos democrático pan-árabe, sistematicamente desmoralizado por derrotas em mãos de xeiques, generais, sicofantas e todo tipo de espiões a soldo das potências norte-atlânticas sedentas de petróleo, mercados e poder estratégico, sob a ativa supervisão, a partir de 1948, do Estado dissimuladamente teocrático e racista, além de atômico clandestino, de Israel.

O fascínio exercido pelo terrorismo jihadista contemporâneo sobre segmentos da juventude islâmica emana, não por acaso, da Revolução Iraniana de 1979, vitória histórica única e tardia do mundo muçulmano contra as potências coloniais, cristalizada não mais no Estado parlamentar democrático divisado em 1952 por Mossadegh, mas no novo Estado teocrático política, cultural e militarmente dirigido pelos aiatolás xiitas. 

Sob a égide de grupos políticos e paramilitares constituídos para a defesa desse Estado, como o Estudantes Islâmicos Seguidores do Imã – responsável pelo longo e momentoso sequestro dos funcionários da embaixada americana em Teerã, em novembro de 1979 - e outros associados à Guarda Revolucionária Iraniana, acostumados a se exibir com detonadores e explosivos atados à cintura, o nome deste ramo do islamismo entrou para o vocabulário mundial como sinônimo de “radical”, “anti-americano” e, por ilação, “terrorista”. 

Por ironia - essa favorita da História -, o Estado Islâmico, ou ISIS, ou Daesh, é tido como um desdobramento direto da decisão de George Bush e seus pares de destruir, por motivo fútil, a casta burocrático-militar sunita de seu antigo peão Saddam Hussein. A Casa Branca é, pois, a principal animadora da nova convergência de objetivos e métodos entre antigos jihadistas xiitas pró-Khomeini, hoje em relativo desprestígio, com novos jihadistas sunitas ligados a Saddam.

Em perspectiva, é impossível evitar a ideia reflexa de que os ovos dessa serpente foram postos pelos titulares do Eliseu, de Downing Street, de La Moncloa e da Casa Branca a chocar nos vastos depósitos de miséria, precariedade e desemprego crônico do Oriente Médio, de onde sua prole acabou transportada, como por um inevitável efeito bumerangue do colonialismo da era da Internet, para os subúrbios empobrecidos de Madri, Londres e Paris.

O terrorismo político não nasceu ontem – mas, no mundo islâmico, aumentou vastamente o seu poder de destruição na proporção direta da disseminação do tráfico de armamentos financiado pelo petróleo e da democratização da violência proporcionada pela ideologia do martírio individual em nome da fé. 

A única via para a sua superação é a elevação rápida, generalizada e sustentável dos níveis de vida material, política e cultural das nações árabes e islâmicas, algo que as potências estrangeiras, seus bancos, petroleiras e empreiteiras levam já um século tratando de impedir pelas vias da partilha territorial, da guerra delegada, do golpe de Estado e da repressão a cargo de suas castas sociais favorecidas.  

O maior e mais eficaz inimigo histórico do terrorismo é, há muito tempo, o movimento socialista – e por uma razão simples: trata-se da única perspectiva capaz de, no mundo moderno, satisfazer a ânsia dos jovens por soluções solidárias, terrenais e sustentáveis, educando-os para a luta aberta, de massas, pelo poder político. O terrorismo islâmico floresceu, inquestionavelmente, no vácuo de poder político e autoridade ideológica - espúrios e em estado degenerativo terminal, não esqueçamos - criado pela agonia e morte do Estado burocrático herdeiro da revolução socialista de outubro de 1917.  

Por isso, nada hoje é mais ensurdecedor do que o silêncio conivente das velhas organizações da classe trabalhadora com os chefes democráticos “esclarecidos” dos Estados norte-atlânticos; nada mais angustiante e opressivo que a exposição total e incontestada das multidões urbanas de todo o mundo aos apelos histéricos de seus governos por uma guerra total contra “inimigos da liberdade” nascidos e criados nos depósitos mundiais de lixo econômico de Wall Street.

O leitor não encontrará neste blog palavras de apoio às cruzadas civilizatórias da "comunidade internacional" contra os povos árabes e islâmicos, quer sejam lideradas por Cameron, Merkel, Rajoy, Putin, Hollande ou Obama

Aos mortos no estúpido massacre de Paris, Uma estranha e gigantesca ave sobre Barcelona dedica uma Rosa, de sobrenome Luxemburgo: ou será o socialismo – libertário e internacionalista, desembaraçado pelas novas gerações de trabalhadores da abjeta submissão socialdemocrata aos donos do dinheiro e da infame adicção filoestalinista às engrenagens do Estado - ou a barbárie - da competição predatória entre conglomerados parasitários dos Estados nacionais, de suas devastações econômicas e militares recorrentes,  da ideologia da guerra econômica permanente de todos contra todos e da destruição sistemática e inexorável do único planeta que temos para viver. 

A redação deste ex abrupto foi disparada pelo desconforto do blogueiro com uma mensagem recebida do Avaaz com os dizeres "Os ataques em Paris e Beirute tiveram um motivo: desestabilizar a base de nossas sociedades".

2015-11-16



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