quinta-feira, 24 de março de 2016

O ocaso da Nova República: Constituinte e cenários alternativos - um esboço

À parte a frenética montagem do impeachment de Dilma, por crimes de responsabilidade até agora não caracterizados e pelas mãos de uma canalha parlamentar que não resiste a três dias de investigações, a evidência mais notória da falência da Nova República é o fato incontornável de que o Executivo e o Legislativo - dilacerados pelos temores, desconfianças e conflitos de interesses gerados pela combinação explosiva da desaceleração abrupta da economia com a supuração da "república das empreiteiras" - já não podem funcionar sem a arbitragem permanente do Judiciário (STF); uma situação administrativamente inviável e altamente instável do ponto de vista político. 

Na verdade, o primeiro dobre do fim da Nova República foi o tsunami democrático de junho de 2013, quando, incentivadas pela luta estudantil em favor da meia-passagem e impelidas pela combustão dos gases fétidos acumulados na preparação da Copa do Mundo, multidões nunca vistas no Brasil tomaram as ruas por ocasião da Copa das Confederações - espelhando-se na Primavera Árabe, nos Indignados da Puerta del Sol e nas Manifestações de Istambul - para exorcizar em público o sentimento represado e difuso de que algo de podre havia também em nosso vasto reino tropical.

Não apenas o pacto lulista está irremediavelmente comprometido; o equilíbrio anterior tampouco pode ser recuperado, tanto por ter o país mudado consideravelmente na era Lula, com a elevação do nível de vida - e exigência - das multidões urbanas relativamente ao Hades das décadas de 1980-90, quanto pelo fato de a ajudicação privilegiada dos negócios e serviços do Estado a um petit comité de bancos, empreiteiras e concessionárias integrados ao circuito financeiro mundial ter sido, notoriamente, catapultada ainda no decênio anterior - a "privataria" da era FHC - para não falar de seus primórdios sob José Sarney, já em vigência da Constituição de 1988.

A questão que parece resumir o atual impasse é: a elevação sustentada do nível de vida dos trabalhadores supõe o prolongamento do pacto sinistro que levou bancos e empreiteiras, pela mão do próprio Estado - sob Sarney, FHC e, desgraçadamente, Lula e Dilma, além de Câmara, Senado e Judiciário - à condição de virtuais concessionários do Brasil?

A resposta, quero crer, tem de ser dada por um novo Congresso Nacional eleito sem a influência do dinheiro e dos potentados midiáticos, com poderes Constituintes suficientes para proceder ao desmonte da "república das empreiteiras" e à criação, no Brasil, de um contrato social autenticamente democrático e dos poderes que lhe correspondam. 

É claro, um Congresso Constituinte democrático e soberano não poderá ser parido pela Nova República em franco processo de decomposição: terá de ser imposto pela mobilização em massa das novas gerações, por todo o país. Ele é o norte necessário da revolução democrática interrompida pelo descarrilamento do PT e retomada, caoticamente como não poderia deixar de ser em tais circunstâncias, pelo tsunami de junho de 2013.  

Nesse processo, o trabalhadorado brasileiro terá condições mais favoráveis para resgatar a sua identidade de classe e proceder à inadiável reconstrução de sua representação política, papel a que o PT renunciou por livre escolha de sua liderança histórica.

Os cenários alternativos, nada auspiciosos para a maioria dos brasileiros, são tipicamente três: 

O primeiro, já em acelerado ritmo de montagem , é um acordão conservador entre as diversas frações do empresariado, sua imprensa onipresente e seus estafetas parlamentares para um golpe congressional na forma do impeachment de Dilma, com a bênção longânime do STF e a anuência passiva e agradecida de militares escaldados que preferem permanecer em seus quartéis. Aqui, transfere-se o poder a Temer, encarrega-se a condução da economia a um ministério do mercado para proceder às "reformas estruturais" e, muito provavelmente, negocia-se, via STF, o paulatino relaxamento das prisões e sentenças dos mega-empresários e políticos processados e condenados em rito eficaz pela Lava-Jato - objeto de indisfarçável perplexidade nos clubes patronais e discretíssimo desconforto no âmbito da suprema corte. Esta alternativa é enormemente facilitada, nas circunstâncias da crise econômica, pela esterilização petista do movimento operário, inscrita no plano de subsunção de todas as classes ao Novo Brasil lulista de desenvolvimento ininterrupto e ganhos para todos - o "Brasil de classe média" de Dilma Rousseff. 

O segundo cenário adverso, cuja probabilidade aumenta exponencialmente no caso de insucesso do primeiro e recrudescimento da agitação política sem perspectiva de saída democrática, é um golpe militar bonapartista, com as consequências conhecidas no que tange às liberdades e direitos. Uma das variantes deste cenário, que lhe explicita o atributo "bonapartista", é a exacerbação, concomitante à restrição das liberdades democráticas, do rigor punitivo da Lava-Jato (com ou sem Moro) contra empresários e políticos, de quaisquer partidos e facções classistas, envolvidos em crimes reais e imaginários contra o Estado e suas agências. 

O terceiro cenário adverso é a aventura populista, na forma de uma guinada à esquerda  baseada não na democracia de massas via Constituinte, mas no prestígio carismático do líder - menos provável na crise atual por não corresponder, aparentemente, às inclinações pessoais do único líder imaginável e não dispor, em todo caso, de suporte suficiente e adequado nas máquinas sindicais nem, até onde se pode enxergar, da indispensável simpatia de segmentos fardados relevantes.

O desenrolar dos acontecimentos não seguirá à letra, é claro, nenhum desses esquemas, mas tenderá, de uma ou outra forma, a remeter a algum deles, quem sabe uma combinação. O certo é que o curso tomado pelo empresariado, de forçar a queda de Dilma pela mão de um Congresso destituído da mínima sombra de prestígio popular e premido pela espada de Dâmocles da Lava-Jato, não tem qualquer chance de resultar em uma solução politicamente estável. A queda de Dilma não tem, ao contrário das ilusões disseminadas, o condão de despertar a economia - o que não fará nem um pouco felizes as multidões assalariadas. Muita água há de rolar debaixo dessa ponte - e quem sabe por cima também. 

A conferir. 


2016-03-24